Atendendo a um “chamado” interno, a arquiteta Júlia Scavone Bergamini, de 28 anos, decidiu gestar seu primeiro e único filho de forma autônoma. Durante a gravidez, não fez acompanhamento periódico, tampouco exames de ultrassom. À medida que a barriga crescia, entendeu que o parto seria da mesma forma: em sua casa em Itatiba, no interior de São Paulo, e sem a presença de profissionais da saúde.

— Foi um direcionamento do meu próprio filho, dizendo que ele era capaz de nascer sozinho — afirma ela, que teve Kael, hoje com 1 ano e oito meses, na companhia de seu companheiro, avó, mãe e irmã. — No início, nossa decisão chocou um pouco a família, ficou um clima. Todo mundo trazia seus próprios medos. Foi um processo de desconstrução para eles.

Nada de parteiras registradas, enfermeiros ou médicos. Defensoras da gestação e parto com autonomia, mulheres estão trazendo bebês ao mundo sem nenhuma assistência profissional, colocando-se como únicas responsáveis pela vida dos filhos e delas próprias.

Enquanto alguns nascimentos não assistidos ocorrem de forma involuntária, muitas vezes a caminho do hospital, o parto livre, autônomo ou autoassistido é uma escolha daquelas que rejeitam o sistema de saúde e apostam na intuição.

A ideia de que o parto é fisiológico e seus corpos estão prontos para vivenciá-lo é o que nutre nessas mulheres a convicção da capacidade de dar à luz não somente sem intervenções, mas também sem a presença médica. Para elas, os profissionais da saúde não têm mais autoridade sobre o que é necessário durante o parto do que a mãe, premissa rejeitada pelos médicos.

Movimento mais consolidado fora, a prática vem ganhando adeptas por aqui, embora não haja estatísticas oficiais. Nos Estados Unidos, mídias sociais, podcasts, vídeos e cursos sobre partos autoassistidos encorajam americanas a seguirem seu próprio caminho no parto, à margem do sistema médico. Na Free Birth Society, uma “plataforma educacional” dedicada ao tema, um guia para o parto livre é vendido por U$ 399.

No Brasil, há pelo menos um podcast dedicado ao assunto, o “Gestação e parto com autonomia”. Muitas dessas mulheres estão amparadas nas ideias do cirurgião francês Michel Odent, segundo o qual é preciso “mamiferizar o parto”. Odent defende que o parto é comandado pelo cérebro primitivo, responsável pela produção dos “hormônios do amor”, e a principal função de quem assiste é proteger o ambiente para que as mulheres possam liberá-los. A privacidade, portanto, é fundamental.

Julia conta que teve um trabalho de parto de 15 horas, acompanhado de sua “ancestralidade feminina”, sem exame de toque ou monitoramento de batimentos. Kael nasceu na banheira e seu cordão umbilical, em vez de cortado foi rompido pelo fogo de uma vela. Depois da experiência, ela passou a dar suporte a outras mulheres que querem repensar a forma convencional de parir.

— Muitas ficaram tocadas com a minha experiência, comecei a receber mulheres com esse desejo. Sinto que é um movimento que está aumentando — afirmou Júlia, que compartilha sua trajetória nas mídias sociais.

Moradora de Garopaba, em Santa Catarina, a parteira argentina Alejandra Dydzinsky, de 39 anos, começou a trabalhar com o tema depois de ter tido seu segundo de quatro filhos de forma autônoma. Ao engravidar pela primeira vez, fez o pré-natal no Sistema Único de Saúde e decidiu parir em casa. Naquela época, aos 22 anos, o acesso à internet e a informações sobre o parto domiciliar era mais difícil.

— Confiava plenamente no que estava vivendo. Se meu companheiro não topasse, ele poderia dar um rolê — brincou Alejandra, que convidou a mãe e uma tia de coração” para acompanhá-la no primeiro parto, “alguém que pelo menos tivesse sentido uma contração na vida”.

Assim, sem acompanhamento profissional, Alejandra deu à luz seus quatro filhos. No primeiro, depois de 28 horas de trabalho de parto, a mãe dela se desesperou, correu até um orelhão e chamou a ambulância. Quando a equipe apareceu, ela já havia parido a filha e a placenta. Foi um “despertar viciante”, diz, momento em que percebeu que “nunca mais conseguiria viver de outra maneira que não fosse questionando tudo”. Decidiu se tornar parteira e “gritar alto para todas as mulheres que parir é a coisa mais simples do mundo”.

No segundo parto, quando a bolsa rompeu, um líquido diferente desceu por suas pernas. O filho havia eliminado o mecônio, espécie de primeiras fezes do bebê, dentro do útero, situação potencialmente arriscada. Nem assim teve medo. Seu pensamento era que, se um filho tivesse de morrer em seus braços, isso aconteceria em casa ou no hospital.

Puro instinto

A também parteira Camila Loss, de 34 anos, sempre quis dar à luz em casa. Na época, conheceu uma parteira que a ajudaria a realizar seu sonho, mas acabou entrando em trabalho de parto com 35 semanas de gestação e foi aconselhada a correr para o hospital. Morava a quase duas horas de distância do mais próximo. Quase pariu no carro.

— Emocionalmente, estava muito tranquila. Me sentia muito bicho, era puro instinto. Meu companheiro veio para me dar a mão e mordi com muita força — lembrou Camila, que teve o bebê prematuro de parto normal, diante de uma plateia de curiosos no hospital.

Achou a experiência horrível. Desesperou-se quando Apuã, hoje com 8 anos, foi para a observação por ter nascido abaixo do peso. Questionou cada intervenção profissional. Nos anos seguintes, começou a trabalhar como parteira. Sofreu três abortos, nenhum deles no hospital. Quando engravidou novamente, mesmo epiléptica desde os 10 anos, reforçou sua vontade de parir em casa, desta vez sozinha. O companheiro questionou a decisão, e ela sugeriu que ele frequentasse consultas de pré-natal.

— Como parteira, já acompanhei reanimação neonatal, hemorragia pós-parto, sei o que pode acontecer. Mas acredito na biologia. Confio muito que, se estou com a minha cria no colo, sem colocar expectativa e responsabilidade em alguém de fora, meu instinto vai dar conta — explicou ela, que trouxe ao mundo Cali, de 2 anos, sem nenhuma ajuda.

Evolução obstetrícia

O médico Elias Ferreira de Melo Junior, membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), afirma que o parto autoassistido é perigoso, não tem respaldo histórico e não oferece nenhuma vantagem em relação ao parto com auxílio.

— Não estou defendendo que o parto seja hospitalar ou assistido por um médico. Só penso que deveria ser auxiliado por alguém minimamente treinado, pelos perigos que apresenta à mãe e ao bebê — diz. — (O parto autoassistido) é como subir o Everest sem oxigênio. Mas, nesse caso, colocando em risco também a vida de um terceiro.

Para Marianne Pinotti, ginecologista, obstetra e mastologista, num país recordista em cesáreas a busca por formas mais naturais de nascer é bem-vinda, mas com limites. Segundo ela, ao mesmo tempo em que o excesso de cesáreas é um problema, “o advento do parto hospitalar foi a maior evolução da obstetrícia do mundo”.

— As urgências do trabalho de parto são absolutamente imprevisíveis. Às vezes, você tem cinco minutos para salvar mãe e bebê — afirma Pinotti. — A mãe pode ficar à vontade, fazer a posição que quiser e até segurar o bebê ao nascer sem ser “atrapalhada” por um médico ou enfermeiro. Mas dentro do hospital e com pessoas com experiência por perto, com segurança.

Com informações do jornal O Globo