*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo
Flávio Dino
Quando Nelson Mandela ficou livre de arbitrária prisão na África do Sul, ele priorizou uma tarefa: liquidar o apartheid. Para isso, como ele escreveu na sua autobiografia, o seu partido CNA deveria ser, naquele momento, uma generosa tenda a acolher diversas correntes políticas.
Nenhuma diferença poderia ser mais importante do que acabar com o apartheid. O pensamento progressista no Brasil precisa refletir sobre o exemplo de Mandela.
Em 2018, poucos acreditavam que o obscuro e obscurantista Jair Bolsonaro pudesse vencer as eleições. Mas ele venceu, beneficiado por uma imensa crise de legitimidade e de reconhecimento da população com o sistema político.
Após 18 meses de desvarios, omissões gravíssimas e denúncias diversas, Bolsonaro mantém razoáveis taxas de aprovação popular.
Recentemente, anova vitória da extrema direita na Polônia lembra-nos de que o ruim ainda pode piorar.
Segundos mandatos tendem a propiciar um sentimento
de aprovação e induzir a ousadias ainda maiores por parte de mentes despóticas. No caso brasileiro, o STF e o Congresso têm tido um peso decisivo para conter os arroubos de Bolsonaro. Terão força para resistir em um segundo mandato?
Se ficarmos presos à configuração política que levou ao desfecho das eleições de 2018, provavelmente ele se repetirá. É hora de olhar para o futuro.
O momento exige novas estratégias, táticas, ideias. Uma “esquerda conservadora” é uma antinomia e é pouco eficaz. Diante dos desafios, “esperar acontecer” é uma escolha que minimiza os perigos que o extremismo bolsonarista implica.
O golpe como momento solene, à moda 1964, foi substituído por um golpismo permanente, realizando destruições sucessivas de instituições e de vidas, como as levadas pelo coronavírus.
No interregno (na acepção gramsciana) que vivemos, valores fundamentais como democracia política, direitos dos trabalhadores e liberdade de expressão estão ameaçados por violências, ameaças e manipulações, como a promovida pelo “gabinete do ódio”.
Para uma nova estratégia capaz de superar o interregno em uma boa direção, é essencial ampliar a audiência do pensamento progressista, alcançando homens e mulheres não engajados em movimentos ou partidos. Este é o mais importante “centro” a ser alcançado. Ocorre que, para chegar até ele, alianças e modulações programáticas são imprescindíveis. Quem tem clareza dos seus propósitos não teme o diálogo com os diferentes.
Sem renunciar a identidades históricas, precisamos unir e ampliar forças para proteger a nossa Nação, a democracia, os direitos sociais, a cultura e o meio ambiente.
Curioso notar que as disputas entre os progressistas giram mais sobre fatos pretéritos do que sobre propostas para o futuro. Portanto, é preciso priorizar mais o futuro dos cidadãos do que o “julgamento” de erros do passado. Necessitamos de uma ampla união progressista que livre o Brasil do bolsonarismo. Lulistas, trabalhistas, socialistas, comunistas, verdes, social-democratas, todos têm um grande papel.
Não podem, nem devem, deixar de existir. A questão é mais simples: abrir portas e janelas para deixar os ventos da Pátria varrerem mágoas. A forma jurídica que viabiliza a atuação conjunta é uma decisão posterior e inevitável, na medida em que passaram a vigorar regras proibitivas de coligações em eleições proporcionais e instituidoras de cláusulas de desempenho.
Existem importantes experiências no Uruguai, Chile, em Portugal, na África do Sul sobre federações partidárias ou frentes reunidas em um partido. O debate mais importante, entretanto, não é sobre a forma, é sobre o espírito que deve nos guiar.
Nenhuma diferença entre nós é mais importante do que defender o Brasil do apartheid representado pelo projeto bolsonarista. É tempo de caminhar com Mandela.
Flávio Dino é governador do Maranhão, foi juiz federal e deputado federal
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